quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A Virada


Branco para ter paz, diziam. Mas o que era paz? Paz não era aquilo que ela sentia quando tomava seus remédios? Aquele vazio repentino que a fazia dormir tranqüila sem pensar em nada? Não era isso a dita paz? Marcia escolhia a roupa sem entusiasmo. 

“Usa uma calcinha vermelha pra você encontrar um amor” — sussurrava-lhe a irmã. Marcia não queria encontrar um amor. Marcia não queria encontrar nada. Aquilo tudo era bobagem, seria só mais uma virada de ano com a família na casa da praia. Todas iguais desde que ela se lembrava. Com o tempo só ficavam mais vazias, mais e mais brancas, como a roupa que eles usavam nesse ritual sem sentido que Marcia não entendia e fingia dar alguma importância só para não contrariar. 

À mesa, lhe recomendavam comer lentilha para atrair dinheiro, simpatias, crendices. Meia-noite, um brinde de champagne, sorrisos, copos estalando. Tomou só um golinho por causa dos remédios, estes sim, mais do que o branco ou as simpatias, talvez lhe trouxessem alguma paz. Festejos, abraços, as melhores intenções. Marcia sorria com esforço, atendia ao pedido da mãe para que não fosse desagradável. 

Logo que pôde, recolheu-se para longe das comemorações. Enquanto outros faziam retrospectivas do ano, sozinha em seu quarto, Marcia revivia frustrada as coisas que não fez, as coisas que não quis fazer, as coisas que não pôde fazer. Coisas que sequer tinha certeza que queria. Ouviu os outros voltando da praia. Tinham ido ver os fogos, pular ondas para se limpar, para ter boa sorte, tudo bobagem, Marcia não acreditava nessas coisas. Marcia não acreditava em nada. 

Os foguetes que não a deixavam descansar diminuíram aos poucos. A euforia da festa abandonava as pessoas e logo tudo era silêncio. Ela se revirava de um lado para o outro na cama grande. Um calor inusitado a importunava. De que vale tudo isto? Outro ano começava e ela pressentia que seria exatamente igual. Ao final dele, estaria novamente na virada com a família, na praia, vestindo branco, sorriso forçado, um gole de champagne... Nada para comemorar, nada para se arrepender, nada para se orgulhar, nada. 

As horas escorriam com Marcia angustiada em seus pensamentos. Levantou e abriu a gaveta do criado mudo, contou as cartelas de remédio controlado que tomava. Recolheu todas, calçou as sandálias e deixou o quarto. Encontrou a casa vazia, altas horas da madrugada, todos já dormiam o sono dos festejos. Ganhou a rua e caminhou o curto trajeto dado pela sorte de ter uma casa quase à beira-mar. 

Abandonou os calçados, deixou que seus pés afundassem na areia. O rugido das ondas parecia perguntar o que seria dela. Marcia tirou um por um dos comprimidos e colocou na palma da mão. Logo amanheceria o primeiro dia de um novo ano e ela não esperava nada dele, nenhuma promessa, nenhuma esperança. Não havia motivos para continuar assim. Fechou a mão cheia de remédios, correu para dentro da água. 

Pela primeira vez em muito tempo Marcia tinha uma vontade, um desejo forte, uma certeza. Marcia realmente queria algo. Numa súbita explosão, como a dos fogos que salpicaram o céu mais cedo, ela tomou uma atitude radical: abriu a mão carregada de comprimidos e lançou ao mar. 

Marcia decidiu que aquele seria o melhor ano da vida dela!




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quarta-feira, 5 de junho de 2013

O Choque - Evna


[Femme au jardin - Théo van Rysselberghe - 1862-1926]

Era um dia de tédio, como todos os outros naquela época. Tivemos visitas e assim que pude fugi para o jardim com uma revista. Estava distraída quando Mirella chegou.
Ela perguntou se estava tudo bem comigo – já que eu estava lá fora isolada. Respondi que sim, tinha ido só tomar um ar. Mas a verdade é que não estava. Era um dia como qualquer outro, repleto das mesmices que eu estava bem acostumada – e farta – só que eu acordei me sentindo estranha, mais angustiada do que de costume.
Buscou a bolsa e veio sentar-se ali, para continuar seu bordado enquanto conversávamos. Ou melhor, enquanto ela conversaria e eu fingiria algum interesse.
Olhei para Mirella entretida com seus afazeres, comentando qualquer coisa em que eu não estava prestando nenhuma atenção. Ah, como ela era linda! Uma beleza tão lânguida, suave e dramática como das musas do cinema. Sempre a invejei por isso, era muito mais bonita que eu. Sempre foi.
É claro que nunca a deixei saber disso, aliás, nem ela nem ninguém. Confessava no máximo para mim mesma. E muitas vezes me alegrava secretamente por ela ser assim tão tola.
Ironicamente, foi quando ela disse que éramos mulheres de muita sorte, por termos encontrado bons homens e tudo mais, que meu sentimento de frustração aumentou.
Seguiu falando sobre o quanto estava feliz com o casamento recente e com o marido, que era um homem simples, mas honesto e de muitas outras qualidades. E que eu logo também estaria, porque ela soube que Zudrick certamente iria propor algo a meu pai.
Ouvir aquilo foi um choque! Eu, noiva?! Senti como se o chão faltasse aos meus pés, por um momento achei que fosse desmaiar.
É verdade, eu apreciava a adoração que ele tinha por mim. Deixar as esperanças dele se alimentarem foi uma forma que eu encontrei de não chamar a atenção. Mas eu não queria casar com ele! Nem com ele nem com nenhum daqueles homens dali!
Meu mundo foi implodindo e uma realidade óbvia surgiu diante dos meus olhos. Já havia passado muito tempo. Essa era a dura verdade: ele nunca voltaria. Eu estive apenas me iludindo. Todas as desculpas que eu havia me dado durante esse tempo por ele não ter me levado junto logo de partida, ou não ter escrito mais, se desfizeram naquele instante.
Era isso: eu estava condenada! Meus pais adoravam Zudrick, bastava que ele fizesse o pedido e meu destino estaria selado.
Atônita, estava chorando sem perceber. Mirella me abraçava gentilmente e perguntava o porquê. Tratei de me acalmar, disse que fui pega de surpresa e me emocionei, só isso. Não sei se ela acreditou, mas fiz o melhor que pude. Isso também já não tinha importância, em breve eu seria como ela, só que amargurada como aquela doce menina jamais sonharia em ser.
Meus sonhos acabaram de se estilhaçar nas pedras daquela calçada. O que ele queria de mim, já teve. Eu fui muito boba! Ninguém viria me salvar.
A menos que eu... não, – afastei aquele pensamento – isso seria muita loucura. Mas também não poderia existir loucura maior do que viver essa vida pacata de boa esposa! Eu precisava agir logo...
Mesmo o mais raro dos diamantes nunca será uma jóia preciosa enquanto estiver escondido nas paredes da mina.

[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]




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O Choque - Mirella


[Young Woman Sewing in a Garden - Berthe Morisot - 1881]

Fomos almoçar na casa dos meus tios e pouco depois de comermos senti falta de minha prima na sala. Perguntei a minha tia, ela disse que Evna devia estar no quarto — ou em algum outro lugar — “entocada”.

— Aconteceu alguma coisa tia?

— Eu não sei, essa menina anda muito estranha ultimamente.

Estava indo bater na porta do quarto quando vi, pela janela, Evna sentada no jardim, com uma revista aberta no colo, olhando para o nada. Devia estar pensando longe, nem viu eu me aproximar. Perguntei se estava bem, por que estava lá fora sozinha? Me disse apenas que queria tomar um ar.
Evna sempre foi de personalidade forte e imprevisível, mas andava mesmo diferente de uns dias pra cá. Distante, calada. No caso, mais calada que o normal, já que nunca escondeu seu desinteresse por nossos assuntos. Aquilo tudo a deixava enfadada, nunca escondeu isso. Mas ficava muito animada se íamos a festas com pessoas de fora ou quando falávamos de moda e de artistas. Mudava completamente de atitude! Acho que como toda jovem, ela também sonhava com aquele fantástico mundo dos filmes.
Busquei meu bordado para continuar enquanto lhe fazia companhia. De repente a percebi me olhando profundamente, sem dizer nada. Mostrei a parte acabada do bordado de flores, perguntei se gostou.
— Uhum – esnobe como sempre. Ah Evna, sempre assim! Ela era diferente, detestava essas coisas de bordar ou cozinhar. Fazia as coisas que era obrigada, e só.
Éramos mulheres de sorte, estava dizendo isso a ela e acabei não resistindo em contar o que soube noutro dia. Talvez não devesse, mas ninguém me pediu segredo e também não era nenhuma novidade. Além do mais, ela estava tão desanimada!
Falei que em breve Zudrick iria pedi-la em noivado. Imediatamente sua feição mudou. Ficou pálida, muda, paralisada, olhando para frente com os olhos arregalados. Parecia estar em choque.

— Evna? – ela não respondeu. Chamei de novo, nada. Pensei até que estivesse passando mal.

Aí uma lágrima escorreu pelo rosto branco, logo depois outra, até que ela desabou num pranto torrencial. Fiquei assustada. Abracei-a, perguntando o que houve. Demorou um pouco para ela se acalmar, daí me disse que foi a surpresa.
Claro, que idéia a minha! Todos nós sabíamos que Evna e Zudrick eram apaixonados e iam acabar se casando. Mas não se dá uma notícia dessas assim, é sempre muita emoção para uma moça saber disso. Devia ter contado com mais jeito. Quem diria que debaixo dessa casca toda existia uma menina sonhadora e romântica!
Logo ela já parecia bem, ainda silenciosa, mas animada e com olhos vivazes. Pediu licença e foi lavar o rosto.
Voltei para os meus pontos, acho que apesar do susto ela ficou feliz, e eu também: este bordado estava ficando lindo!

[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]




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segunda-feira, 3 de junho de 2013

L'Indolence


[L'Indolence - Arthur Frederick Bridgman - 1880]


Finjo amar a Vida,

pois que a Morte,

caprichosa,

só me levará

quando bem quiser.




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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Parisienne

O antigo depósito de velharias, na parte mais alta do edifício, fora também convertido em dormitório desde que o lugar tornara-se pensão. Para alcançá-lo havia uma penosa escada pelo lado de fora. Agradou-lhe este, mesmo assim.

O papel de parede rosa, rudemente aplicado, disputava espaço com o cinza das infiltrações, manchas aquareladas que aumentavam a cada chuva. O cheiro da umidade constante era camuflado sob o aroma dos perfumes baratos que ela espalhava por tudo.

A mobília era um conjunto de itens corroídos pelo tempo, esquecidos ali por não terem mais utilidade ou por estarem quebrados. Tal como o velho lustre que ela encontrou soterrado entre a muamba e aquele rapaz, gentilmente, prontificou-se a instalar no lugar da deprimente lâmpada que pendia solitária do teto.

Entre esses móveis , totalmente fora de época, um era especial: o toucador. Daqueles com um grande espelho oval – manchado – e uma banqueta com rasgos no estofado. Ali estavam depositados os artifícios da sua vaidade. Seu primeiro camarim.

O guarda-roupa – assustadoramente grande para o vazio dos seus pertences – aos poucos era preenchido com a generosidade dos franceses.

Acima da cabeceira da velha cama, ao invés da figura de algum santo para proteger-lhe, os rostos glamourosos de Bardot, Deneuve e Taylor compunham sua trindade mais que santíssima.

Dentro do baú grande de madeira, debaixo de muitas revistas, sepultou as lembranças que trouxera consigo. E sobre este, na vitrola, os clássicos de Piaf embalavam a afirmação de sua identidade de moça parisiense.


A pequena janela que se abria dali para o mundo, respiro único da rosada clausura, deixava ver lá longe, em meio ao tapete de telhados, a imponente Dama de Ferro. Pudera ter escolhido entre outros, inclusive melhores, mas este era o único de onde podia assistir a Dama-Torre reinar absoluta sobre a cidade. Eiffel, lindo nome.

Jamais se perderia à deriva nesse mar de incertezas, pois seu farol orientador estava sempre lá. Poder acordar e vê-la dali, era como espiar o sonho pelo buraco da fechadura.

Os degraus lá fora rangeram com a chegada de alguém. Jogou o robe vermelho sobre os ombros, conferiu a aparência no espelho e quando fosse abrir para o visitante, ainda escorada na porta, estenderia a mão numa pose ensaiada: Mademoiselle Eiffel, enchantée.


[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]




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domingo, 25 de novembro de 2012

Adash, um ano de saudade

Faz exatamente um ano que eu recebi a pior notícia que eu poderia receber. Perdi meu chão, meus sonhos desabaram, minha vida virou de pernas pro ar, quando a morte levou a pessoa que eu mais amei no mundo, junto com uma boa parte de mim.

Há mais ou menos 12 anos atrás Adash entrou definitivamente na minha vida fazendo uma pergunta para qual só havia uma resposta. Há um ano ele se foi desse mundo me deixando com inúmeras perguntas sem resposta.



Um ano às vezes é pouco. Um ano às vezes é muito.

Um ano é muito pra conviver dia após dia com a ausência de alguém que você ama.

Um ano é pouco pra acostumar, aceitar e dizer que está “tudo bem”. Ainda é impossível ver qualquer coisa dele sem sentir um aperto.

Eu que por vezes senti apenas saudades de algumas pessoas, mas sempre me vangloriei de não sentir a falta de ninguém. Hoje sinto, ainda, muito a falta dele.

Não sei exatamente como eu passei por isso, sei que sobrevivi. Só porque não havia outra opção. Faz um ano que tudo que eu faço é pra me distrair dessa ausência e continuar.

Lembro que minha mãe quando por algum motivo lembrava do marido falecido chorava muito. Eu não entendia como que depois de tanto tempo – mais de vinte anos – ela ainda podia sentir tanto. Hoje eu entendo perfeitamente: para algumas coisas o tempo não significa nada.



Ainda há poucos dias eu encontrei nos escritos dele uma carta de tempos atrás que ele nunca me entregou. É impressionante como aquelas palavras fizeram muito mais sentido depois disso tudo ter acontecido do que fariam na época que ele escreveu.

As últimas palavras dele que eu ouvi foram: “Ti amuuuu”. Esse dia vai ficar pra sempre marcado na minha memória.



E hoje faz um ano.

Mas hoje é só um dia, em um ano. E um ano é muito, um ano é pouco...

Esteja em paz meu amor!

Te vejo em breve.




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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Piracicaba, o início da Ditadura Cristã no Brasil



Foi com grande estarrecimento, seguido de profunda indignação, que tomei conhecimento das notícias citadas logo abaixo. Vi-as na página do facebook de uma amiga, que assim como eu, teme ao assistir o início fatídico da instauração da Ditadura Evangélico-Cristã no Brasil.

Não que isso seja grande surpresa, pois há tempos vimos presenciando movimentos e articulações nesse sentido acontecendo em diversas partes do país.

Há tempos que o Estado, que nunca foi realmente laico, ameaça perder seus últimos poucos traços de laicidade. Há tempos que esses movimentos deixaram de limitar-se ao âmbito religioso pra interferir diretamente na política, e por consequência nas leis e no Poder Público, impondo pouco a pouco o fundamentalismo dos seus dogmas para a sociedade.

Mas pela primeira vez um fato indiscutível é registrado e noticiado por jornais e programas de televisão.

Um regimento está nos sendo empurrado goela abaixo! E nele consta que tudo quanto não esteja de acordo com os interesses ou fuja do padrão imposto pelas religiões evangélicas será, inicialmente atacado, pra depois ser reprimido e em seguida perseguido, como bem se pode ver nas notícias que seguem.

Isso aconteceu aonde? Lá mesmo! Na cidade chamada Piracicaba. Lembra dela? Não faz muito tempo que ela foi palco da tentativa de se instituir uma lei municipal (proibindo sacrifício animal) que impedia diretamente a continuidade das atividades dos terreiros de candomblé na cidade, sob pena de multa.

Àqueles que há pouco tempo atrás reviravam os olhos e viam como exagerada as prenuncias de que estaríamos caminhando para a formação da República Evangélico-Fundamentalista-Cristã do Brasil, eu peço a gentileza de olharem as notícias abaixo e me explicarem o que pode estar acontecendo, se não exatamente isso?





Noticia no Jornal de Piracicaba

Notícia no site G1-São Paulo

Será que você viu a mesma coisa que eu?!

Vamos recapitular: um cidadão, no pleno exercício dos seus direitos, se nega a levantar-se para a leitura de um trecho da bíblia, durante a abertura de uma sessão da Câmara dos Vereadores de uma cidade. Diante disso, é solicitado que ele se retire do recinto. Ele, novamente no exercício dos seus direitos, se recusa a sair. Então é acionado o uso de força militar para retirá-lo dali. Sob o argumento de que ele estaria comprometendo a segurança da sessão.

Confesso que eu estou pasmo! Mas espere, vamos do começo:

1- Por que motivo é instituída a leitura de um trecho da bíblia na abertura de uma sessão da Câmara? Baseado em quê? Desde quando isso é necessário, apropriado ou mesmo cabível em uma audiência de um órgão público? Por acaso a bíblia tornou-se a Nova Constituição ou algum outro livro de leis reconhecidas pelo Estado e ninguém avisou a população?

2- Quando foi que cerimônias de cunho religioso passaram a ter status de solenidade, repito, em ambientes do PODER PÚBLICO? Para que a pessoa que se negar a ficar de pé seja vista e tratada da mesma forma como que se negasse a fazer o mesmo na execução do Hino Nacional? Não me admirará se este último for revisto e ganhar algum teor “gospel” em breve!

3- Que tipo de risco à segurança estava apresentando aquele cidadão que, bem se pode ver no vídeo, estava desarmado e sentado no plenário? O que justifica ele ser retirado contra vontade por policiais dali?

4- Qual o motivo do incômodo com o rapaz que estava registrando o ocorrido, já que supostamente estava-se “somente cumprindo as ordens do Presidente em conformidade com o regimento interno da casa”?

5- Como é que vereadores/militares/funcionários/etc assistem a uma barbaridade dessas passivamente?

Talvez todas essas perguntas respondam-se num único sentido: o brasileiro é altamente desincentivado a conhecer as leis que regem sua vida particular, pois isso acarretaria inúmeros problemas para a classe governante. Mas é obrigado a doutrinar-se pela bíblia e pelos princípios, ditos “cristãos”, já que estes pregam obediência cega e submissão, que convenhamos, é muito mais interessante para quem nos governa nesse ritmo de total desrespeito.

A liberdade individual vem sendo sumariamente cerceada por esse movimento. O seu direito de livre credo e culto está sob ataque constante. Sejam quais forem as suas opções de vida, uma vez que sejam contrárias a esses ideais, em breve deixarão de ser apenas “mal vistas”, alvo de preconceito incitado e propagado livremente, para serem então “contra a lei”. Qual lei? A que está valendo: a lei da alienação evangélico-pentecostal-bíblico-fundamentalista-cristã!

Nós, os que estamos dentro do exercício dos nossos direitos garantidos por lei, mas fora do padrão que está sendo imposto por religiosos no âmbito público desse país, precisamos nos manifestar, e logo!

No silêncio da nossa indiferença, o monstro de uma nova ditadura está nascendo e acabará por devorar de vez a frágil liberdade que temos...




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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Vem, o tempo urge!

Sou acordado pelo estranho som de passos lentos, que se arrastam em minha direção. O ar está pesado, enegrecido, intoxicante. Cheira a mofo, velho, morto... Respirar dói.

Meu corpo jaz inerte, denso como chumbo. Mover-me exige muito esforço. O leito é conhecido, mas tenho certeza de que nunca o vi. Será que ainda durmo?

O vulto negro se aproxima. Meus olhos entorpecidos não distinguem dele mais do que uma figura embaçada.

O cabo da foice, que me golpeia a espalda, por fim me desperta. E junto dele o som trovejante daquela voz quase metálica: “Vamos acorde! Eu voltei!”

Meus ossos doem. Parece que são estes, ao invés dos ouvidos, que escutam e estremecem com aquela terrível voz! Que prossegue resmungando:

“Ainda assim, sempre sonhando...”

Levantando-me com esforço, posso agora distinguir melhor aquela figura cinzenta que segue lentamente até a mesa posta logo ali. Olho em volta, na busca instintiva de reconhecer o ambiente. Discorrem alguns momentos até que minha mente consiga compreender o que está ocorrendo.

No reduto aposento do meu interno, coisas se acumulam por todos os lados. O Velho desvia das minhas lembranças espalhadas pelo chão, o pé esquelético arrastando-as para fora do seu caminho, num gesto de total desdém. Não, ele não se importa com elas.

Meneando a cabeça desaprovadoramente, ele afasta para o lado algumas outras coisas que ocupam a mesa, me dizendo:

“Quanta porcaria tem guardado! O que pensa que vai fazer com tudo isso?”

Ai, que voz terrível ele tem! É a voz do tempo, que sussurra ecos do passado nos ouvidos da consciência. Ouvi-la é sentir a devastação do quanto já se passou, de quanto dele se perdeu, de tudo que não se fez. A frustração de tudo quanto poderia ter sido, mas não foi e já não poderá mais vir a ser, simplesmente porque o momento certo se perdeu, repetidas vezes.

Não respondo a pergunta pendente, pois esta dispensa réplicas. A maior inquietação está no que a presença dele aqui significa: Saturno retorna. Um ciclo todo se cumpriu. O tempo passou. A hora da verdade chega. O tribunal está instaurado e aquela pergunta inquisidora é inevitável: o que eu fiz desse tempo todo?

“Vem, o tempo urge!” – intima-me, pousando uma ampulheta sobre a mesa.

“O Senhor do Tempo tem pressa. Que ironia!” – digo ao me sentar diante dele.

Não aprecio sua visita. Desprezo-o, não nego. Não vejo em sua presença nada além de opressão e sofrimento. Após um breve instante de silêncio, Saturno retoma o assunto como que querendo mostrar-se interessado:

“Então, o que tem feito?”

“Vivido.”

“Claro.”

“Com alguns percalços... mas dizem que o tempo cura tudo, não é?”

“Não sei. Dizem isso?” – devolve, fitando-me profundamente.

Eu ainda não tinha atentado para aqueles olhos, verdadeiros abismos feitos de um negrume vazio. Buracos negros a consumir tudo que viram. Seu olhar enigmático me atravessa, percorrendo-me a alma. Até que, assumindo um tom grave, ele diz:

“Tenho fome.”

“Fome? Como assim?” – indago confuso.

A resposta surge num gesto surpreendentemente ágil pra aquela aparente morbidez. O Velho crava a mão ossuda no meu peito, invadindo-o. Terror! O choque me petrifica.

“Vamos ver o que temos aqui.” – diz ele, enquanto remexe dentro de mim como quem procura coisas numa bolsa. Saturno quer saciar sua fome alimentando-se das minhas experiências.

À medida que sua busca prossegue, cenas minhas são revividas, memórias obscuras já esquecidas no passado voltam à tona, um filme passa na minha cabeça.

“Sempre as mesmas coisas...” – resmunga, tomando uma ou outra forma estranha e mastigando-as aborrecido.

“O que você esperava? Foste cruel comigo!” – respondo revoltado.

“Criança tola, não entende que é a poda que permite crescer?!”

Não, não entendo. Só sinto o peso daquela presença, a dor do meu peito sendo dilacerado naquela cena insólita.

“Ah!” – anima-se de repente –“Ao menos conheceu o amor!”

Levando à boca aquela forma delicada, parece-me que alguma vida começa a preencher o olhar enegrecido. Devora-a avidamente com uma expressão de deleite.

“Fale-me dos seus sonhos.”

“Para que? Você irá destruí-los de qualquer forma.”



“Destruir? Não!” – replica espantado – “Sou eu que te cedo a chance de realizá-los!”

Permaneço olhando-o sem entender a afirmação. Estranhamente noto que aquela figura temível e assombrosa começa a querer ganhar ares mais agradáveis, alguma beleza parece surgir aos poucos naquele semblante antes tão sombrio. Pacientemente ele explica:

“Só a consciência da finitude traz sentido real às coisas. Faz com que valham a pena. É a visão dos limites que faz com que se possa realizar algo. Lança as bases para uma construção concreta. O tempo passa levando embora as ilusões. Só o que é real permanece. O que é verdade em você se mantém intacto. Aquilo de há de mais forte em você é o verdadeiro. O que realmente te move, te constitui e te define, é intocável. O resto sucumbe. Afinal, do que você é feito? Essa é a pergunta que eu trago!”

Estou perplexo. Sinto-me absolutamente pequeno nesse momento. Tenho vergonha de ter tamanha ignorância. Ele prossegue enfático:

“Tuas ilusões e anseios desmedidos é que te podem frustrar. Volto pra te lembrar da tua humanidade e de toda a satisfação que se pode alcançar dentro desta condição limitada. Todo o resto pode te mentir, eu apenas trago a verdade.”

E a verdade liberta! Esse entendimento aniquila todo o peso que eu estava sentindo. A forma horrorosa que eu via nele transmutou-se numa beleza tenaz. Lembrar de ser apenas humano, nada mais. A certeza da finitude é uma benção. Sou tomado por uma sensação de relaxamento, prazerosa, às beiradas do sono.

“Descanse, eu logo vou. Estou só de passagem. Você também.”

Vejo o fio de areia escorrendo continuamente na ampulheta sobre a mesa. A pergunta me transborda pela boca:

“Ainda tenho tempo?”

“Talvez. Não o desperdice mais.”

Minhas pálpebras pesam, não há como resistir a corrente de tranquilidade que me invade. Não há por que resistir. A última coisa que ainda consigo ouvir antes de desligar completamente, é carregada de um sotaque peculiar, em tom jocoso:

“Carpe Diem...”


[Meu abraço faterno a todos aqueles que estão passando ou vão passar em breve pelo retorno de Saturno.]




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