domingo, 25 de novembro de 2012

Adash, um ano de saudade

Faz exatamente um ano que eu recebi a pior notícia que eu poderia receber. Perdi meu chão, meus sonhos desabaram, minha vida virou de pernas pro ar, quando a morte levou a pessoa que eu mais amei no mundo, junto com uma boa parte de mim.

Há mais ou menos 12 anos atrás Adash entrou definitivamente na minha vida fazendo uma pergunta para qual só havia uma resposta. Há um ano ele se foi desse mundo me deixando com inúmeras perguntas sem resposta.



Um ano às vezes é pouco. Um ano às vezes é muito.

Um ano é muito pra conviver dia após dia com a ausência de alguém que você ama.

Um ano é pouco pra acostumar, aceitar e dizer que está “tudo bem”. Ainda é impossível ver qualquer coisa dele sem sentir um aperto.

Eu que por vezes senti apenas saudades de algumas pessoas, mas sempre me vangloriei de não sentir a falta de ninguém. Hoje sinto, ainda, muito a falta dele.

Não sei exatamente como eu passei por isso, sei que sobrevivi. Só porque não havia outra opção. Faz um ano que tudo que eu faço é pra me distrair dessa ausência e continuar.

Lembro que minha mãe quando por algum motivo lembrava do marido falecido chorava muito. Eu não entendia como que depois de tanto tempo – mais de vinte anos – ela ainda podia sentir tanto. Hoje eu entendo perfeitamente: para algumas coisas o tempo não significa nada.



Ainda há poucos dias eu encontrei nos escritos dele uma carta de tempos atrás que ele nunca me entregou. É impressionante como aquelas palavras fizeram muito mais sentido depois disso tudo ter acontecido do que fariam na época que ele escreveu.

As últimas palavras dele que eu ouvi foram: “Ti amuuuu”. Esse dia vai ficar pra sempre marcado na minha memória.



E hoje faz um ano.

Mas hoje é só um dia, em um ano. E um ano é muito, um ano é pouco...

Esteja em paz meu amor!

Te vejo em breve.




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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Piracicaba, o início da Ditadura Cristã no Brasil



Foi com grande estarrecimento, seguido de profunda indignação, que tomei conhecimento das notícias citadas logo abaixo. Vi-as na página do facebook de uma amiga, que assim como eu, teme ao assistir o início fatídico da instauração da Ditadura Evangélico-Cristã no Brasil.

Não que isso seja grande surpresa, pois há tempos vimos presenciando movimentos e articulações nesse sentido acontecendo em diversas partes do país.

Há tempos que o Estado, que nunca foi realmente laico, ameaça perder seus últimos poucos traços de laicidade. Há tempos que esses movimentos deixaram de limitar-se ao âmbito religioso pra interferir diretamente na política, e por consequência nas leis e no Poder Público, impondo pouco a pouco o fundamentalismo dos seus dogmas para a sociedade.

Mas pela primeira vez um fato indiscutível é registrado e noticiado por jornais e programas de televisão.

Um regimento está nos sendo empurrado goela abaixo! E nele consta que tudo quanto não esteja de acordo com os interesses ou fuja do padrão imposto pelas religiões evangélicas será, inicialmente atacado, pra depois ser reprimido e em seguida perseguido, como bem se pode ver nas notícias que seguem.

Isso aconteceu aonde? Lá mesmo! Na cidade chamada Piracicaba. Lembra dela? Não faz muito tempo que ela foi palco da tentativa de se instituir uma lei municipal (proibindo sacrifício animal) que impedia diretamente a continuidade das atividades dos terreiros de candomblé na cidade, sob pena de multa.

Àqueles que há pouco tempo atrás reviravam os olhos e viam como exagerada as prenuncias de que estaríamos caminhando para a formação da República Evangélico-Fundamentalista-Cristã do Brasil, eu peço a gentileza de olharem as notícias abaixo e me explicarem o que pode estar acontecendo, se não exatamente isso?





Noticia no Jornal de Piracicaba

Notícia no site G1-São Paulo

Será que você viu a mesma coisa que eu?!

Vamos recapitular: um cidadão, no pleno exercício dos seus direitos, se nega a levantar-se para a leitura de um trecho da bíblia, durante a abertura de uma sessão da Câmara dos Vereadores de uma cidade. Diante disso, é solicitado que ele se retire do recinto. Ele, novamente no exercício dos seus direitos, se recusa a sair. Então é acionado o uso de força militar para retirá-lo dali. Sob o argumento de que ele estaria comprometendo a segurança da sessão.

Confesso que eu estou pasmo! Mas espere, vamos do começo:

1- Por que motivo é instituída a leitura de um trecho da bíblia na abertura de uma sessão da Câmara? Baseado em quê? Desde quando isso é necessário, apropriado ou mesmo cabível em uma audiência de um órgão público? Por acaso a bíblia tornou-se a Nova Constituição ou algum outro livro de leis reconhecidas pelo Estado e ninguém avisou a população?

2- Quando foi que cerimônias de cunho religioso passaram a ter status de solenidade, repito, em ambientes do PODER PÚBLICO? Para que a pessoa que se negar a ficar de pé seja vista e tratada da mesma forma como que se negasse a fazer o mesmo na execução do Hino Nacional? Não me admirará se este último for revisto e ganhar algum teor “gospel” em breve!

3- Que tipo de risco à segurança estava apresentando aquele cidadão que, bem se pode ver no vídeo, estava desarmado e sentado no plenário? O que justifica ele ser retirado contra vontade por policiais dali?

4- Qual o motivo do incômodo com o rapaz que estava registrando o ocorrido, já que supostamente estava-se “somente cumprindo as ordens do Presidente em conformidade com o regimento interno da casa”?

5- Como é que vereadores/militares/funcionários/etc assistem a uma barbaridade dessas passivamente?

Talvez todas essas perguntas respondam-se num único sentido: o brasileiro é altamente desincentivado a conhecer as leis que regem sua vida particular, pois isso acarretaria inúmeros problemas para a classe governante. Mas é obrigado a doutrinar-se pela bíblia e pelos princípios, ditos “cristãos”, já que estes pregam obediência cega e submissão, que convenhamos, é muito mais interessante para quem nos governa nesse ritmo de total desrespeito.

A liberdade individual vem sendo sumariamente cerceada por esse movimento. O seu direito de livre credo e culto está sob ataque constante. Sejam quais forem as suas opções de vida, uma vez que sejam contrárias a esses ideais, em breve deixarão de ser apenas “mal vistas”, alvo de preconceito incitado e propagado livremente, para serem então “contra a lei”. Qual lei? A que está valendo: a lei da alienação evangélico-pentecostal-bíblico-fundamentalista-cristã!

Nós, os que estamos dentro do exercício dos nossos direitos garantidos por lei, mas fora do padrão que está sendo imposto por religiosos no âmbito público desse país, precisamos nos manifestar, e logo!

No silêncio da nossa indiferença, o monstro de uma nova ditadura está nascendo e acabará por devorar de vez a frágil liberdade que temos...




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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Vem, o tempo urge!

Sou acordado pelo estranho som de passos lentos, que se arrastam em minha direção. O ar está pesado, enegrecido, intoxicante. Cheira a mofo, velho, morto... Respirar dói.

Meu corpo jaz inerte, denso como chumbo. Mover-me exige muito esforço. O leito é conhecido, mas tenho certeza de que nunca o vi. Será que ainda durmo?

O vulto negro se aproxima. Meus olhos entorpecidos não distinguem dele mais do que uma figura embaçada.

O cabo da foice, que me golpeia a espalda, por fim me desperta. E junto dele o som trovejante daquela voz quase metálica: “Vamos acorde! Eu voltei!”

Meus ossos doem. Parece que são estes, ao invés dos ouvidos, que escutam e estremecem com aquela terrível voz! Que prossegue resmungando:

“Ainda assim, sempre sonhando...”

Levantando-me com esforço, posso agora distinguir melhor aquela figura cinzenta que segue lentamente até a mesa posta logo ali. Olho em volta, na busca instintiva de reconhecer o ambiente. Discorrem alguns momentos até que minha mente consiga compreender o que está ocorrendo.

No reduto aposento do meu interno, coisas se acumulam por todos os lados. O Velho desvia das minhas lembranças espalhadas pelo chão, o pé esquelético arrastando-as para fora do seu caminho, num gesto de total desdém. Não, ele não se importa com elas.

Meneando a cabeça desaprovadoramente, ele afasta para o lado algumas outras coisas que ocupam a mesa, me dizendo:

“Quanta porcaria tem guardado! O que pensa que vai fazer com tudo isso?”

Ai, que voz terrível ele tem! É a voz do tempo, que sussurra ecos do passado nos ouvidos da consciência. Ouvi-la é sentir a devastação do quanto já se passou, de quanto dele se perdeu, de tudo que não se fez. A frustração de tudo quanto poderia ter sido, mas não foi e já não poderá mais vir a ser, simplesmente porque o momento certo se perdeu, repetidas vezes.

Não respondo a pergunta pendente, pois esta dispensa réplicas. A maior inquietação está no que a presença dele aqui significa: Saturno retorna. Um ciclo todo se cumpriu. O tempo passou. A hora da verdade chega. O tribunal está instaurado e aquela pergunta inquisidora é inevitável: o que eu fiz desse tempo todo?

“Vem, o tempo urge!” – intima-me, pousando uma ampulheta sobre a mesa.

“O Senhor do Tempo tem pressa. Que ironia!” – digo ao me sentar diante dele.

Não aprecio sua visita. Desprezo-o, não nego. Não vejo em sua presença nada além de opressão e sofrimento. Após um breve instante de silêncio, Saturno retoma o assunto como que querendo mostrar-se interessado:

“Então, o que tem feito?”

“Vivido.”

“Claro.”

“Com alguns percalços... mas dizem que o tempo cura tudo, não é?”

“Não sei. Dizem isso?” – devolve, fitando-me profundamente.

Eu ainda não tinha atentado para aqueles olhos, verdadeiros abismos feitos de um negrume vazio. Buracos negros a consumir tudo que viram. Seu olhar enigmático me atravessa, percorrendo-me a alma. Até que, assumindo um tom grave, ele diz:

“Tenho fome.”

“Fome? Como assim?” – indago confuso.

A resposta surge num gesto surpreendentemente ágil pra aquela aparente morbidez. O Velho crava a mão ossuda no meu peito, invadindo-o. Terror! O choque me petrifica.

“Vamos ver o que temos aqui.” – diz ele, enquanto remexe dentro de mim como quem procura coisas numa bolsa. Saturno quer saciar sua fome alimentando-se das minhas experiências.

À medida que sua busca prossegue, cenas minhas são revividas, memórias obscuras já esquecidas no passado voltam à tona, um filme passa na minha cabeça.

“Sempre as mesmas coisas...” – resmunga, tomando uma ou outra forma estranha e mastigando-as aborrecido.

“O que você esperava? Foste cruel comigo!” – respondo revoltado.

“Criança tola, não entende que é a poda que permite crescer?!”

Não, não entendo. Só sinto o peso daquela presença, a dor do meu peito sendo dilacerado naquela cena insólita.

“Ah!” – anima-se de repente –“Ao menos conheceu o amor!”

Levando à boca aquela forma delicada, parece-me que alguma vida começa a preencher o olhar enegrecido. Devora-a avidamente com uma expressão de deleite.

“Fale-me dos seus sonhos.”

“Para que? Você irá destruí-los de qualquer forma.”



“Destruir? Não!” – replica espantado – “Sou eu que te cedo a chance de realizá-los!”

Permaneço olhando-o sem entender a afirmação. Estranhamente noto que aquela figura temível e assombrosa começa a querer ganhar ares mais agradáveis, alguma beleza parece surgir aos poucos naquele semblante antes tão sombrio. Pacientemente ele explica:

“Só a consciência da finitude traz sentido real às coisas. Faz com que valham a pena. É a visão dos limites que faz com que se possa realizar algo. Lança as bases para uma construção concreta. O tempo passa levando embora as ilusões. Só o que é real permanece. O que é verdade em você se mantém intacto. Aquilo de há de mais forte em você é o verdadeiro. O que realmente te move, te constitui e te define, é intocável. O resto sucumbe. Afinal, do que você é feito? Essa é a pergunta que eu trago!”

Estou perplexo. Sinto-me absolutamente pequeno nesse momento. Tenho vergonha de ter tamanha ignorância. Ele prossegue enfático:

“Tuas ilusões e anseios desmedidos é que te podem frustrar. Volto pra te lembrar da tua humanidade e de toda a satisfação que se pode alcançar dentro desta condição limitada. Todo o resto pode te mentir, eu apenas trago a verdade.”

E a verdade liberta! Esse entendimento aniquila todo o peso que eu estava sentindo. A forma horrorosa que eu via nele transmutou-se numa beleza tenaz. Lembrar de ser apenas humano, nada mais. A certeza da finitude é uma benção. Sou tomado por uma sensação de relaxamento, prazerosa, às beiradas do sono.

“Descanse, eu logo vou. Estou só de passagem. Você também.”

Vejo o fio de areia escorrendo continuamente na ampulheta sobre a mesa. A pergunta me transborda pela boca:

“Ainda tenho tempo?”

“Talvez. Não o desperdice mais.”

Minhas pálpebras pesam, não há como resistir a corrente de tranquilidade que me invade. Não há por que resistir. A última coisa que ainda consigo ouvir antes de desligar completamente, é carregada de um sotaque peculiar, em tom jocoso:

“Carpe Diem...”


[Meu abraço faterno a todos aqueles que estão passando ou vão passar em breve pelo retorno de Saturno.]




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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Velut Luna - Parte II

O que eu considero mais fascinante no Tarô é essa característica que ele tem de representar princípios universais. Isso faz com que a amplitude de possibilidades que cada arcano guarda em seus símbolos seja infindável.

Um arcano tem muitos “lados”, pode ser visto por diversos ângulos diferentes. Tem um sentido próprio em cada nível de análise e mesmo assim nunca perde sua referência principal. E é inesgotável! Parece-me que nunca se chega ao fim deles, não importa quantos livros consultemos, nem quantas experiências tenhamos acerca de uma carta, sempre há mais por descobrir.


[Medieval Scapini]


Aqui, n’A Lua, esta complexidade é elevada a uma potência extrema. Coberta de mistérios, ela não se permite desvendar facilmente. Nos lança dúvidas, medos, ilude, enfeitiça, enlouquece. Nega-se ser vista pela luz da razão e da lógica. Não há como dissecá-la. Há o risco constante daquele que ousa confrontá-la se perder nos seus enganos, mas este é o único meio. É impossível penetrar nos seus mistérios sem se deixar também envolver por ela.

Em seu Curso Completo de Tarô, Nei Naiff aborda essa amplitude do arcano dizendo:

“Nos tarôs clássicos e modernos, revela o vasto simbolismo lunar, um dos mais complexos em sua significação – mãe, nutrição, magia, divindade, rituais, fecundidade, prosperidade, amor, terror. Sua luz remete tantos aos ritmos românticos como aos funestos, tanto à fada quanto à bruxa; a Lua retrata o mundo das aparências e da ilusão com seus raios diáfanos.”(p.96)

Para além da ideia de mera dualidade, ambiguidade é o que para mim parece demonstrar melhor o ambiente aqui apresentado. Tanto há representado nesse arcano algo de muito sutil, imaterial, como há também nele algo de extremamente concreto, corpóreo.


[Iniciático da Golden Dawn]


A vertente esotérica do Tarô, que fez atribuições da Astrologia e Cabala Hermética aos arcanos, atribuiu a Lua, enquanto “planeta”, ao arcano II – A Sacerdotisa e ao arcano XVIII - A Lua, atribuiu o signo de Peixes. Diferente do que ocorre com outras atribuições, essa parece bastante clara, ou melhor, obscura – estamos falando da Lua!

Crowley, no seu O Livro de Thoth, foi quem assinalou com maior veemência essa distinção, assim como trouxe à tona o enfoque mais pesado dessa carta:

“A Lua, participando como participa do mais alto e do mais baixo e preenchendo todo o espaço intermediário, é o mais universal dos Planetas. Em seu aspecto mais elevado, ocupa o lugar do Vínculo entre o humano e o divino, como é exibido no Atu II. Neste Trunfo, seu avatar mais baixo, ela se une à esfera terrestre de Netzach com Malkuth, a culminação na matéria de todas as formas superiores. Trata-se da lua minguante, a lua da feitiçaria e dos feitos abomináveis. Ela é a escuridão envenenada que é a condição do renascimento da luz.” (p.109)

Peixes é um signo de água, mutável, feminino. Vou tentar me abster aqui da enormidade de analogias possíveis com o simbolismo lunar, como por exemplo: é o signo que rege o sistema linfático, o qual atua no corpo paralelamente ao sanguíneo (sol), regulando o fluxo dos líquidos nas células e tecidos, porém circulando por compressão e não por bombeamento, etc.

E focar só nas características principais da personalidade pisciana, equivalentes à natureza desse arcano. Focar, aliás, é o grande desafio presente aqui.


[Thoth]


Mais adiante em seus apontamentos sobre o arcano, Crowley diz:

“Este é o limiar da vida; este é o limiar da morte. Tudo é dúbio, tudo é misterioso, tudo é intoxicante. Não a intoxicação benigna, solar de Dionísio, mas sim a horrível insanidade de drogas perniciosas; trata-se da embriaguez dos sentidos após a mente ter sido abolida pelo veneno desta Lua.” (p.110)

Se por um lado Peixes, assim como a Lua, é imaginativo, sensível, romântico e intuitivo. Pelo lado negativo, é sabida sua fama de idealista e sonhador. Da sua dificuldade em assumir e encarar a realidade. Padecendo de um constante escapismo, fugindo do mundo. Perde-se facilmente em devaneios e fantasias particulares. Abraça ideais utópicos e tem dificuldade em lidar com a matéria.

Também é denominadamente o signo da caridade, altruísmo, benevolência e espiritualidade. Quando confrontado com algo desagradável, que não saiba lidar, os “males” do mundo, aquilo que vemos de feio e assustador, foge para algum refúgio imaginário e prefere manter-se por lá do que lidar frente à frente com a situação.

O mais grave de tudo, e aonde eu vejo o maior paralelo com a influência desse arcano, é que passa de sensível à susceptível. Acaba tendo sua vontade enfraquecida, sua capacidade de realizar anulada e sendo arrastado pelas influências externas. Logo, por mais elevados que sejam seus ideais, uma vez que não aplicados na prática, tornam-se vazios e, numa visão mais crítica, hipócritas.

Está aí demonstrado, durante a Era de Peixes, quanto o discurso cristão de amor ao próximo pouco fez a humanidade efetivamente abster-se do obscurantismo e violência em grande parte da nossa história.

Porém, isso tem nome: medo. Mas medo de quê?

Pois bem, essa pergunta é a que me leva para dentro dos aspectos mais profundos da carta.

Uma consideração final acerca da atribuição desse signo ao arcano d'A Lua é a que particularmente me parece mais importante, novamente citando Crowley:

“Peixes é o último dos signos. Representa o último estágio do inverno. Poderia ser denominado a Porta da Ressurreição.” (p.109)

A título de curiosidade, caberia pontuar aqui que esta é a época que precede o Equinócio de Primavera, também é a época adotada para comemoração da Páscoa cristã, ambos ritos em que se celebram o ressurgimento/ressurreição da luz/vida após um período adverso.

Antes que se pudesse gozar a alegria da primavera, era necessário atravessar um inverno rigoroso. Ou ainda, podemos tomar a alegoria do Cristo que para viver a glória da ressurreição tem que enfrentar o martírio da Paixão.

Uma vez que seja o último estágio, lhe é intrínseca a necessidade de transcendência, renascimento. E a vontade/necessidade de mudar, de transcender, geralmente é proporcional aos medos que precisamos superar para vencer a limitação imposta.
O medo do novo, do desconhecido, do diferente.




[Rider Waite]


Falando sobre este arcano, Waite em seu The Pictorial Key to the Tarot, diz:

“A estrada entre as torres é o caminho para o desconhecido. O cão e o lobo são os temores da mente natural em presença daquele lugar de saída, quando só há para guiar uma luz refletida.”(p.57)

Temor seria uma reação plenamente natural, creio eu, a qualquer um que se visse no cenário proposto nessa carta. Mas, curiosamente, não temos nenhum personagem humano figurando aqui.

Como o próprio Waite trata em seguida na sua consideração:

“A luz intelectual é um reflexo e para além fica o mistério desconhecido que não pode ser mostrado. Ela ilumina a nossa natureza animal, alguns tipos da qual são representados embaixo: o cão, o lobo e aquilo que vem das profundezas, a inominável e horrível tendência que é mais baixa do que o animal selvagem." (p.57)

Para além do alcance da luz intelectual está o nosso inconsciente. De onde, entre outras coisas, emerge nosso “eu animal”.

N’A Lua, somos confrontados com nossa natureza selvagem. Somos jogados de volta às entranhas da natureza, a lidar com nossos instintos mais viscerais.




[Golden Dawn]


No O Tarô Cabalístico, de Robert Wang, ao buscar sobre este caminho,lemos:

“Este é um Caminho primitivo, relacionado com a natureza bruta animal. É o Caminho dos instintos animais (a lei da selva), das paixões e energias que não estão sob o controle das considerações intelectuais, morais ou éticas.” (p.184)

É interessante observar que a atribuição cabalística dada a este arcano é Qoph, que significa “nuca” e, segundo Crowley, se refere às potências do cerebelo.

Este é o órgão que faz a ponte entre os comandos do cérebro e o corpo. Está ligado às funções de equilíbrio, movimentos voluntários e reflexos involuntários como a respiração e os batimentos cardíacos. Poderíamos dizer que basicamente é o órgão que liga o centro de consciência intelectual ao veículo corporal.

Wang ainda sugere que este caminho represente o processo de encarnação, no qual o espírito organiza o corpo que irá habitar.

É aqui que eu percebo este arcano começar a tomar uma proporção mais material, corpórea. Indo direto de encontro ao núcleo do simbolismo lunar e, ao mesmo tempo, convergindo com aquilo que a cultura nos ensinou constantemente a temer: o feminino.

Indiscutivelmente, a Lua é o símbolo do feminino por excelência. Basta que se olhe para as mais remotas tradições antigas para constatar isso. E tudo quanto tenha sido relacionado ao âmbito lunar, possui analogia com o feminino.




[Marselha]


Não são, pois, os cães companheiros de Artémis/Diana e também de Hécate que figuram na carta?

Seria muita arbitrariedade ver na composição da figura uma apologia ao ventre da mulher, com suas torres/trompas e lago/útero? Pode ser que sim. De toda forma, me permitirei isso.

São nos insondáveis mistérios do ventre feminino, sangrando a cada ciclo lunar, que a vida se forma.

É da escuridão aquosa do útero dela que todos nós viemos. Expostos desde ali às forças da natureza primordial. São nas dores do seu parto que saímos pela primeira vez, rumo ao desconhecido. Arrancados do conforto uterino vivemos nosso primeiro rito de passagem, tornamo-nos um corpo manifesto independente.

Via de regra, desde então, passaremos a ser educados numa cultura que preza o sentido contrário a esta origem. Aprenderemos a temer as emoções, controlar racionalmente a manifestação delas. Ver esses mecanismos como perigosos, traiçoeiros, enganadores.

O medo do Feminino, que por conseguinte se estende à figura da Mulher, da Lua e da Natureza de um modo geral já é parte integrante do inconsciente da humanidade há tempos.

Mas aí vem A Lua nos lembrar disso: ainda somos animais, mamíferos por definição. Apenas diferenciados por uma consciência dotada da capacidade intelectual.

Crowley lança uma luz pertinente, ao dizer que esta senda é guardada pelo Tabu. Que todo preconceito, superstição e tradição morta se reúnem aqui.

Isso inevitavelmente me leva a pensar na construção de valores culturais judaico-cristãos que, diferente das remotas correntes pagãs, nos afastam da comunhão com a Natureza. Muitas vezes demonizando corpo/sexualidade e especialmente valores ligados ao feminino, nos impedem de percebermos o divino em nós.

Como eu disse no princípio desse longo texto, cheio de loucuras piscianas, creio que não se pode penetrar nos mistérios do arcano d’A Lua sem também se deixar envolver por ela.

Mais do que um momento de provação, de perigo e alerta, este me parece ser um caminho de aceitação da condição humana, da integração com nosso lado dito “obscuro”. Sem isto, creio que seja improvável que Mãe-Lua nos “dê à luz” do arcano seguinte.

Numa última citação ao Crowley, finalizando sua abordagem do arcano ele remete àquilo que frequentemente santos, místicos e iluminados tratam por "Noite Escura da Alma".

Por redução, A Lua carrega em si O Eremita (1+8 = 9). E me é intrigante cogitar a ideia essa que a peregrinação que a figura deste sábio/santo faz seja pelo escuro caminho proposto n’A Lua.

Mas isso já é conversa pra outro momento...




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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Velut Luna - Parte I

Desde sempre a Lua exerce um grande fascínio sobre a humanidade. Sobre mim, em particular, tanto mais. E isso vem se acentuando no decorrer deste ano regido por ela.

Entre todos os povos, religiosa ou apenas culturalmente, há a associação de uma série de conceitos com a Lua e a crença de que ela possa influenciar as coisas sobre a Terra. O binário Sol/Lua é análogo a todos os conceitos de opostos complementares que conhecemos, inclusive e especialmente à ideia de gênero.


Enquanto o Sol, governante da luminosidade do dia, verdadeira fonte da energia e calor que sustenta a vida, é associado a valores como: positivo, masculino, ativo, razão, lógica, força, vigor, objetividade, consciência, lucidez, estabilidade, etc.

À Lua, senhora da noite que nos ilude com cálidos raios prateados que não são seus, se faz toda a atribuição oposta: negativo, feminino, passivo, emoção, intuição, fragilidade, fraqueza, subjetividade, inconsciência, devaneio, variabilidade, etc.

Por isso, é a Lua/Noite que se costuma relacionar tudo aquilo que não é regrado, ordinário. Como certos tipos de estado/temperamento: a Lua dos apaixonados, românticos, sensíveis, artistas, boêmios, loucos, desajustados, etc. Além, claro, das fantásticas criaturas das trevas: vampiros, lobisomens, fantasmas e assemelhados.

Na própria língua se percebe isso claramente quando não raro ouvimos algumas expressões comuns:

“Fulano é de Lua” – para expressar que é uma pessoa de humor imprevisível.

“Fulano vive no mundo da Lua” – pra indicar que a pessoa é sonhadora, desligada, fora da realidade.

“Fulano nasceu com a bunda virada pra Lua” – para dizer que alguém tem muita sorte.

“Lunático” – sinônimo para louco, insano.

Talvez a mais intrínseca de todas seja a ideia de inconstância/variação, motivada especialmente pela Lua aparecer em constante mudança no nosso céu. São as famosas “fases”.


Inerente a essa alternância das fases, existe a crença de que a influência da Lua, dependendo da fase em que encontra, possa ser favorável ou não aquilo que se vá fazer.
Todo mundo conhece a história aquela que na Nova as coisas se renovam, na Crescente crescem, na Cheia ganham o máximo de amplitude e na Minguante diminuem. Deste modo, diz-se que a Lua atua sobre a geração, formação e o desenvolvimento de todas as coisas na Terra. Por isso é comum se observar as fases antes de realizar plantios, podas e colheitas das plantas. De cortar cabelos e unhas. Diz-se também que a troca da Lua precipita o nascimento em gestações avançadas.

Confesso que fiquei bastante surpreso, ou talvez decepcionado, ao descobrir que nenhuma dessas crenças populares em torno da Lua tem validação científica. Nenhuma!

Mas o número de partos não aumenta na Lua Cheia? Não. Pelo menos nada que pudesse se constatar estatisticamente.

Mas e as plantas não nascem e dão frutos melhores se plantarmos na Lua certa? Pois é, não. Pesquisadores vêm testando Luas plantios em Luas "boas" e "ruins" e não deu diferença nos resultados.

E os lobos que uivam pra Lua cheia? Pois é, não é pra Lua que eles uivam. É para chamar outros lobos pra caça, para demarcar território caso estejam sendo invadidos, pra se comunicar. E não é na Lua cheia, é em todas. A cheia só é mais badalada porque a luminosidade dela favorece a caçada noturna, só isso.

Decepcionante, não? É a Lua novamente nos lançando ilusões!

A única exceção são as marés, só. E ainda assim tem muito mais a ver com o aumento da força gravitacional do Sol do que com a Lua em si.

Mas aí eu lembrei que tomar banho de sal grosso ou plantar arruda na frente de casa também não possui nenhuma validade científica e deixei isso pra lá.

O fato é que sempre percebi uma mudança drástica e involuntária no meu humor em um determinado período do mês. Costumava brincar que se eu fosse mulher esse seria meu período menstrual!

Até que há alguns dias atrás, casualmente ajudando uma amiga a programar uma espécie de encantamento de acordo com a Lua, percebi que esses altos e baixos coincidiam com as mudanças de fase lunar.

Isso automaticamente me lembrou de uma música lindíssima, entitulada "Hijo de la Luna", originalmente da banda espanhola Mecano, que ganhou numerosas versões e eu acabei conhecendo na voz de Sarah Brightman.



[Letra e tradução disponíveis aqui.]

A música conta a história de uma cigana que pede à Lua por um marido. A Lua por sua vez propõe lhe conceder o desejo, desde que a cigana lhe entregue o primeiro filho do casal. A cigana questiona no refrão o que a Lua de Prata, que quer ser mãe mas não pode, fará com uma criança de pele? A Lua diz que se a mulher está disposta a trocar o filho por um marido, é porque não o amará realmente.

A cigana se casa com seu sonhado cigano e quando a criança nasce, ao invés de morena como os pais, é branca de olhos cinzentos. O cigano enfurecido acreditando ter sido traído mata a mulher a abandona a criança no alto da montanha.

A canção finaliza dizendo que quando a Lua está cheia é porque a criança está bem. E que quando chora, a Lua então míngua para lhe fazer um berço.

“Nossa, que lindo! Sou como o tal hijo de la luna!” – poderia pensar eu. Mas não, na verdade sou apenas desequilibrado.

Ignorando minha natural tendência pagã e todos os aspectos astrológicos formados pela Lua no meu mapa, posso me ater somente ao signo e isso me levará ao arcano XVIII – A Lua do tarô.


[Arcano XVIII - A Lua - Cosmic Tarot]

Que era onde eu pretendia chegar desde o princípio, mas a postagem acabou ficando muito extensa, então deixo para a próxima parte.




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quarta-feira, 6 de junho de 2012

Mirror, mirror... on the wall

[Trailer - Snow White and the Huntsman - 2012]
ATENÇÃO: essa postagem pode conter spoilers!

Foram somente dois fatores que me fizeram querer assistir este filme desde o primeiro anúncio:
1- Ser dos mesmos produtores do Alice in Wonderland (Tim Burton, 2010).
2- Ter uma Rainha Má linda e glamourosa como Charlize Theron.

Não há de se esperar muito de filmes deste tipo. No entanto, essas releituras de contos de fada sempre trazem novos sentidos a elementos da história original e acabam por refletir o que a sociedade está vivendo naquele momento. Foram detalhes deste tipo que mais me chamaram atenção ao assistir o filme.

Antes disso, caberia uma pausa para dizer que a produção realmente faz jus ao esperado, a fotografia, as locações, os efeitos especiais são maravilhosos!

E pra aqueles que, assim como eu, sempre preferem as vilãs, Charlize não decepciona em nada. Na minha opinião o filme poderia muito bem ter se chamado “Ravena - The Evil Queen”.

Mas enfim, o que eu achei interessantíssimo foi o filme ter se focado em um embate que acontece literalmente “entre mulheres”. Valendo-se de pontos muito inerentes ao feminino para desenvolver seu enredo e deixando o papel das figuras masculinas correrem em segundo plano.

Apesar de preservar sua característica geral, parece que a sociedade não entende mais as figuras da Princesa Boazinha e da Rainha Má segundo os velhos moldes, mesmo que seja em um conto desse tipo.


Desta vez, temos uma Rainha/Bruxa Má cuja maldade está fundamentada no desejo de vingança contra o mal causado à sua família/povo pela dominação violenta de um rei velho.
Do outro lado temos uma Princesa, que apesar de dócil, não atende mais ao perfil frágil e romântico dos antigos contos. Ela é uma sobrevivente, que luta corajosamente por seus ideais e culmina a trama reconquistando seu reino perdido vestindo armadura, empunhado espada e escudo e convocando seu povo à guerra.


A ferida de valores implantados pelo patriarcado, como a objetificação da mulher e a rivalidade entre elas, fica explícita o tempo todo na trama. Desde o momento em que, no leito de núpcias, a rainha diz ao rei algo como que as mulheres só têm valor enquanto jovens e bonitas, pois quando ficam velhas são descartadas e entregues aos cães, antes de assassiná-lo. Até o ponto fatídico em que o espelho diz a rainha que seu poder está ameaçado pela beleza de alguém que “hoje torna-se mulher”.

Tudo gira em torno da obsessão por beleza e juventude, representados como que sendo a fonte do “poder” que a rainha tanto persegue. E naquela cena clássica da maçã envenenada ela não usa o disfarce da velhinha. Ao invés disso, transforma-se no próprio “príncipe encantado”, para depois de ludibriar a princesa que sofre as dores do veneno, questionar-lhe se agora percebe como o amor é uma ilusão perigosa. E não, também não é o beijo do príncipe que desfaz o encanto. Pois o filme deixa reis e príncipes relegados a um plano coadjuvante.

No “final feliz” mais um detalhe me surpreendeu: nada de casais apaixonados que “viveram felizes para sempre”. A princesa, que volta da morte para reconquistar seu trono e seu reino, aparece sendo coroada para reinar sozinha. Como soberana única, sem um rei, sem um par, atentando contra o velho dogma da necessidade de um homem para ampará-la.




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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Dona Geni, de la Mancha

O horário atípico me deu a oportunidade de encontrar um assento vago no trem de volta. Coisa rara ultimamente.
Apesar disso, o cenário é o mesmo de costume: um grupo de pessoas envolvidas por pensamentos que navegam nas telas espelhadas dos seus celulares ou são orquestrados pelos seus fones de ouvido.

Agrupadas num mesmo espaço/tempo, vivem cada qual a sua realidade particular.
Especialmente por ela, aquela senhora sentada no lado oposto do vagão, conversando com o encosto do banco da frente.

Aparentava ter os seus mais de sessenta anos. Vestia-se sobriamente e tinha cabelos arrumados com o volume típico dos penteados das mulheres da sua geração, tingidos de um castanho profundo que fazia contraste intenso à pele clara.

Chamava-se Geni, mas eu ainda não sabia disso.

Em um tempo incerto, no seu universo particular ela travava uma discussão ferrenha com alguém. Alguém que a ofendeu em um passado recente e por um motivo qualquer ela não revidou na hora, e agora remoia as coisas que deveria ter respondido.
Ou talvez alguém que fosse encontrar para esclarecer uma situação, num futuro próximo, quando chegasse ao seu destino.
Não importava, Geni prosseguia vivenciando intensamente o seu monólogo.

Inquieta, ajeitava-se constantemente no banco, inclinava-se pra frente, agressiva, como se faz comumente para dar ênfase ao que estamos dizendo.
Logo depois recostava-se novamente no banco, puxando a gola do casaco de lã para fechá-lo sobre o peito e acomodar a bolsa no colo para apoiar as mãos.

Geni falava de si com firmeza, colocando a mão sobre o peito, logo acima de onde o tempo e o amamentar dos filhos haviam nivelado seus seios.
Permanecia alguns segundos desse modo, estava ouvindo o que o “outro” dizia. E se não lhe agradava, rebatia. Desfazendo o arranjo num novo gesto enfático.

Por vezes severa, por vezes irônica, as muitas nuances do embate iam emergindo no seu semblante.
Olhava pra fora e balançava a cabeça. Inconformada, dizia a si mesma que isso não poderia ficar assim, de jeito nenhum!

Fez o sinal da cruz quando passamos por uma igreja. Aquilo tudo podia na verdade ser uma oração. Deus era testemunha e estava do seu lado. Geni rogava que lhe desse força, porque ela foi oprimida.
Geni argumentava, gesticulava dando forma ao que estava dizendo e por fim apontava o dedo, na face imaginária do seu interlocutor.

Geni sabia se defender. Quem sabe em um outro tempo, pudesse ter sido uma advogada de renome ou uma implacável promotora de justiça.
Se a vida tivesse sido diferente, mas não foi. Com certeza havia sido muito bonita quando jovem, seus traços do rosto afinados e maçãs elevadas ainda preservavam a sombra dessa beleza que cedeu espaço às marcas de sofrimento que tempo deixou.

Mas a maturidade também lhe trouxe dignidade. Não, ela não se calaria mais! Ali, no imenso espaço existente naquele meio banco que ela ocupava no trem, Geni bradaria como uma leoa!
Porém num tom tão baixo, tão para si mesma, que por nada atrapalharia o raciocínio exigido pelas palavras cruzadas que o senhor ao seu lado preenchia.

Um som inconveniente surgiu para promover alguma trégua a sua batalha interna.
Abriu um tanto atrapalhada o zíper da grande bolsa de couro preto e remexeu até encontrar o aparelho celular.
Ao atender impaciente, identificou-se. Foi quando descobri seu nome.
Falou muito rapidamente sem dar nenhuma brecha pra conversa se desenvolver.
E logo bateu o flip do aparelho e largou de volta na bolsa, demonstrando não dar a menor importância para o que foi dito.

Geni estava injuriada, era fato. Estava escrito na sua expressão.
Como se a pessoa do outro lado tivesse ousado lhe dizer:
“Geni, são apenas moinhos de vento.”
E ela irredutível afirmasse: “Não! São gigantes!” - encerrando a ligação.

Mas o que afinal teria acontecido? Com quem ela estava discutindo tão nervosa? Que tipo de coisa poderia estar a incomodando tanto?

Jamais saberei...

Numa estação qualquer Geni cruzou a porta do vagão e se foi, me privando da verdade.
Fui bruscamente abandonando às minhas próprias projeções sobre ela.

Afinal, cada um de nós vive, sim, a realidade da sua própria percepção.




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sexta-feira, 11 de maio de 2012

So bored...

Conte-me algo que eu não saiba...
Por favor, mostre-me algo novo!
Doe-me alguma intensidade
Me faça perder o ar
Ter um frio no estômago
Um arrepio na alma
Uma surpresa, uma aventura, uma paixão, uma boa causa
Um bom “por que”
Me impressione!
Com algo que não faça ser só mais um dia após o outro
Não se extingue em fogo fátuo
Um bom contraste
Um imprinting
Uma borboleta que surge, ao acaso, e faz o gato saltar do seu sono na grama pra querer persegui-la nas alturas...

Pelos Deuses, estou tão entediado!




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domingo, 18 de março de 2012

A Papisa encimava o baralho...

A velha caixa rangeu sua tampa ao ser aberta. Mesmo depois de tanto tempo, o perfume das rosas ainda exalava da madeira escura.
Retirou o maço de cartas com cuidado. Na tinta gasta do verso, estava impressa a história de todas as mãos que já as haviam tocado.
A Papisa encimava o baralho. Como sempre, do jeito que sua avó havia lhe ensinado.

Lembrou-se do modo como ela embaralhava as cartas com firmeza. E das vezes em que fingia brincar, só para poder ficar observando ela sentada, na ponta da grande mesa da cozinha, deitando as cartas sobre a toalha branca.
Das expressões atentas, das amigas que vinham lhe consultar, enquanto ela falava com feição séria, apontando alguma lâmina.
Da sua voz carinhosa lhe explicando que as figuras estavam desbotadas e as bordas gastas porque era muito velho, tinha sido de alguém da família há muitos anos atrás e veio de geração em geração até finalmente ser dela.
Da vontade que tinha de mexer naquelas cartas grandes, quando por vezes sua avó a deixava ficar no colo, enquanto abria o tarô para alguém.

De repente, viu-se novamente menina, em pé ao lado da cama. Com os vívidos olhos verdes da avó lhe fitando, perdidos em meio ao rosto abatido, enquanto com algum esforço ela abria a gaveta do criado mudo e pegava a caixa do baralho.

“Eu recebi da minha mãe, que recebeu da mãe dela, que tinha recebido da avó dela, que também tinha recebido de alguém da família antes. Agora é seu. Ficará toda a vida contigo e um dia você também entregará para alguém.”

Estava atônita, não sabia o que fazer ou o que dizer. Suas mãos tremiam ao estendê-las para receber o presente.

“Vai guardar ele contigo sempre, não importa onde você for, levará ele contigo. Não deixará ninguém mais usar. Por nada vai se desfazer dele. Usará sempre com respeito. E um dia vai passar pra uma herdeira tua, como eu estou fazendo agora. Me prometa!”

“Eu prometo.”

Colocou a caixa sobre suas mãos trêmulas e lhe abençoou, tocando sua testa.

“Sim, eu prometo...” – balbuciou sem perceber, com o olhar perdido sobre as lâminas que segurava.

“Me fala! Você está vendo alguma coisa?” – disse a aquela voz aguda que lhe trouxe de volta ao presente.

[Excerto de um improvável futuro romance]




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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Saturno, em retorno...


[A Roda da Fortuna - Jean Delville, 1940]

Saturno, seu velho
cretino e sábio
Vens me ceifar os sonhos
Grãos que escoam
das Areias do Tempo
no teu andar arrastado

Não me deixa viver as quimeras
Alheias a tua presença
Que insiste
Nas rugas que surgem no espelho
Ou na dor que brota nos ossos
Lembrando sempre
O escravo que sou
deste teu caminhar

Saturno, soturno...
O que afinal espreita esse teu novo retorno?

Ao fim e ao cabo
seremos todos tragados
pela ambição do teu poder...
Pai terrível
Devorador de seus filhos

Quiçá haja meios
No espaço entre os teus passos
de haver grandes feitos
Aquém dessa limitação
Para que não reste apenas
O fantasma de um tempo em vão.




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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Les Reines Noires de Agache

Foi nos créditos da impactante "La roue de la Fortune" que vi pela primeira vez esse nome: Agache, há alguns anos atrás.
Vi-o novamente há poucos dias, dessa vez com a sua "L'Épée", então fui buscar conhecer suas outras obras e me apaixonei!

Como leigo absoluto que sou, meu contato com as artes é bastante instintivo.
Eu olho. Gosto ou não gosto. Me toca ou não. Me diz alguma coisa, ou não me diz nada.
E nesse caso, as pinceladas funestas de Agache me dizem, sim, e muito!

Não me contive em fazer uma analogia, de toda inútil, porém irresistível, com as Rainhas do Tarô. Obviamente, isso não representa nada além daquelas infames "comparações de figurinhas"...

Então, vamos às "Rainhas Negras" de Agache.

OUROS


[La Diseuse de Bonne Aventure, 1895] [Rainha de Ouros - Thoth Tarot - Crowley/Harris]

A mulher portando o globo, nesse ambiente telúrico de verde/dourado/negro/marrom do quadro me lembrou de imediato a carta do Thoth, onde a Rainha aparece "entronizada sobre a vida da vegetação", e o disco tradicional ganha a tridimensionalidade de um globo/esfera.


[Rainha de Ouros - Antichi Tarocchi Liguri-Piemontesi][Fantaisie, 1907]. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .[Cover / Dodal / Ottone]

Em alguns baralhos clássicos, além do disco/globo, ela também porta um cetro/bastão. Isso, acrescido da similaridade da posição e do traje me fez ver algo em comum entre as cartas e essa pintura dele.

Ainda nos domínios da Dama de Ouros, caberia uma outra obra, intitulada "Vanité".


COPAS



[Enigme, 1888]. . . . . . . . . . . . . . . .[Rainha de Copas - Thoth Tarot - Crowley/Harris]


Sim, as cores são destoantes. Mas a composição é muito semelhante, a pose delas é idêntica e os elementos encontram paralelos em ambas as imagens. Até mesmo a ave que aparece aos pés da rainha na carta, tem seu correspondente no emblema de Ísis/Mut estampado no alto da parede, no fundo do quadro.

Curiosamente, essa obra é chamada "Enigme", e me remete muito a forma indecifrável com a qual foi representada essa Rainha no Thoth. Nas palavras do próprio Crowley sobre ela:

"A imagem dela é de extrema pureza e beleza, com sutileza infinita; ver sua Verdade é dificilmente possível pois ela reflete a natureza do observador com grande perfeição."
(O Livro de Thoth, p. 153)

Quando esta obra foi exposta, em 1888, era acompanhada por um excerto de poema de Edmond Haraucourt, dizendo:

"Sacerdotisa do enigma e filha do mistério / Eu guardo sob o céu os segredos do que ele quer fazer / E eu sei do futuro como um fato consumado. / Mas eu fechei a minha alma austera / No orgulho do silêncio e da paz do esquecimento." (tradução livre)

[Étude, 1910]. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .[Rainha de Copas - Medieval Scapini]


Neste outro caso, a comparação se deve apenas pelo semblante plácido, cingido por uma coroa e um véu esvoaçante e, principalmente, pelo gesto da mão sobre o peito, referência ao coração (Copas), feita por ambas.
Eu não consegui decifrar o que ela segura na outra mão, tampouco obtive essa informação pesquisando acerca. Se alguém conseguir entender, por favor me avise!


PAUS



[Magicienne, 1897]. . . . . . . . . . . . . . . .[Rainha de Paus - Rider-Waite]


A referência do bastão é bastante óbvia. Alguns outros elementos também coincidem. Mas numa impressão geral, a mim pelo menos, a sensação evocada por ambas as imagens é muito parecida. Especialmente pelas cores vivazes, ígneas que Agache utilizou aqui.
Além disso, a pintura intitula-se "Magicienne", o que me remete muito ao caráter de magia/bruxaria atribuído a essa Rainha.



[Les Couronnes, 1909]. . . . . . . . . . . .[Rainha de Paus - Ancient Tarot de Marseille]

Já aqui, a exuberante cabeleira solta e a coroa de louros são os elementos diretos comuns em ambas as imagens. De fato, não consta nenhum bastão na pintura. Há sim, a sugestão de fogo dada pela fumaça saindo do queimador à esquerda da composição.


ESPADAS



[L'Épée, 1896]


Esta dispensa qualquer demonstração. A obra fala por si só. Uma mulher de postura forte, semblante firme, descansa sobre seu colo uma espada. Ao fundo lê-se a inscrição latina "PRO IVSTITIA TANTVM" que significa que a espada (violência) deve ser utilizada apenas por Justiça.


O ARTISTA



Alfred-Pierre Joseph Agache(Lille, 29 de agosto de 1843 — Lille, 15 de setembro de 1915) foi um pintor acadêmico francês. Infelizmente pouco se sabe a respeito dele. Iniciou sua carreira como músico, mas em uma viagem à Itália conheceu grandes clássicos e acabou se especializando em retratos e em pinturas alegóricas de grande escala. Exibia frequentemente seu trabalho em Paris. Foi membro da Sociedade de Artistas Franceses e, em 1885, ganhou uma medalha de terceira classe por seu trabalho. Teria cultivado amizade com o artista americano James Abbott McNeill Whistler e com o escritor francês Auguste Angellier; este último dedicou um livro a Agache por volta de 1893. Duas de suas peças, "Vanité" e "L'Annonciation", foram apresentadas na Exposição Universal de Chicago. Em 1895, Agache se tornou oficial da Legião de Honra.

Para conhecer algumas de suas obras clique aqui.