quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Velut Luna - Parte II

O que eu considero mais fascinante no Tarô é essa característica que ele tem de representar princípios universais. Isso faz com que a amplitude de possibilidades que cada arcano guarda em seus símbolos seja infindável.

Um arcano tem muitos “lados”, pode ser visto por diversos ângulos diferentes. Tem um sentido próprio em cada nível de análise e mesmo assim nunca perde sua referência principal. E é inesgotável! Parece-me que nunca se chega ao fim deles, não importa quantos livros consultemos, nem quantas experiências tenhamos acerca de uma carta, sempre há mais por descobrir.


[Medieval Scapini]


Aqui, n’A Lua, esta complexidade é elevada a uma potência extrema. Coberta de mistérios, ela não se permite desvendar facilmente. Nos lança dúvidas, medos, ilude, enfeitiça, enlouquece. Nega-se ser vista pela luz da razão e da lógica. Não há como dissecá-la. Há o risco constante daquele que ousa confrontá-la se perder nos seus enganos, mas este é o único meio. É impossível penetrar nos seus mistérios sem se deixar também envolver por ela.

Em seu Curso Completo de Tarô, Nei Naiff aborda essa amplitude do arcano dizendo:

“Nos tarôs clássicos e modernos, revela o vasto simbolismo lunar, um dos mais complexos em sua significação – mãe, nutrição, magia, divindade, rituais, fecundidade, prosperidade, amor, terror. Sua luz remete tantos aos ritmos românticos como aos funestos, tanto à fada quanto à bruxa; a Lua retrata o mundo das aparências e da ilusão com seus raios diáfanos.”(p.96)

Para além da ideia de mera dualidade, ambiguidade é o que para mim parece demonstrar melhor o ambiente aqui apresentado. Tanto há representado nesse arcano algo de muito sutil, imaterial, como há também nele algo de extremamente concreto, corpóreo.


[Iniciático da Golden Dawn]


A vertente esotérica do Tarô, que fez atribuições da Astrologia e Cabala Hermética aos arcanos, atribuiu a Lua, enquanto “planeta”, ao arcano II – A Sacerdotisa e ao arcano XVIII - A Lua, atribuiu o signo de Peixes. Diferente do que ocorre com outras atribuições, essa parece bastante clara, ou melhor, obscura – estamos falando da Lua!

Crowley, no seu O Livro de Thoth, foi quem assinalou com maior veemência essa distinção, assim como trouxe à tona o enfoque mais pesado dessa carta:

“A Lua, participando como participa do mais alto e do mais baixo e preenchendo todo o espaço intermediário, é o mais universal dos Planetas. Em seu aspecto mais elevado, ocupa o lugar do Vínculo entre o humano e o divino, como é exibido no Atu II. Neste Trunfo, seu avatar mais baixo, ela se une à esfera terrestre de Netzach com Malkuth, a culminação na matéria de todas as formas superiores. Trata-se da lua minguante, a lua da feitiçaria e dos feitos abomináveis. Ela é a escuridão envenenada que é a condição do renascimento da luz.” (p.109)

Peixes é um signo de água, mutável, feminino. Vou tentar me abster aqui da enormidade de analogias possíveis com o simbolismo lunar, como por exemplo: é o signo que rege o sistema linfático, o qual atua no corpo paralelamente ao sanguíneo (sol), regulando o fluxo dos líquidos nas células e tecidos, porém circulando por compressão e não por bombeamento, etc.

E focar só nas características principais da personalidade pisciana, equivalentes à natureza desse arcano. Focar, aliás, é o grande desafio presente aqui.


[Thoth]


Mais adiante em seus apontamentos sobre o arcano, Crowley diz:

“Este é o limiar da vida; este é o limiar da morte. Tudo é dúbio, tudo é misterioso, tudo é intoxicante. Não a intoxicação benigna, solar de Dionísio, mas sim a horrível insanidade de drogas perniciosas; trata-se da embriaguez dos sentidos após a mente ter sido abolida pelo veneno desta Lua.” (p.110)

Se por um lado Peixes, assim como a Lua, é imaginativo, sensível, romântico e intuitivo. Pelo lado negativo, é sabida sua fama de idealista e sonhador. Da sua dificuldade em assumir e encarar a realidade. Padecendo de um constante escapismo, fugindo do mundo. Perde-se facilmente em devaneios e fantasias particulares. Abraça ideais utópicos e tem dificuldade em lidar com a matéria.

Também é denominadamente o signo da caridade, altruísmo, benevolência e espiritualidade. Quando confrontado com algo desagradável, que não saiba lidar, os “males” do mundo, aquilo que vemos de feio e assustador, foge para algum refúgio imaginário e prefere manter-se por lá do que lidar frente à frente com a situação.

O mais grave de tudo, e aonde eu vejo o maior paralelo com a influência desse arcano, é que passa de sensível à susceptível. Acaba tendo sua vontade enfraquecida, sua capacidade de realizar anulada e sendo arrastado pelas influências externas. Logo, por mais elevados que sejam seus ideais, uma vez que não aplicados na prática, tornam-se vazios e, numa visão mais crítica, hipócritas.

Está aí demonstrado, durante a Era de Peixes, quanto o discurso cristão de amor ao próximo pouco fez a humanidade efetivamente abster-se do obscurantismo e violência em grande parte da nossa história.

Porém, isso tem nome: medo. Mas medo de quê?

Pois bem, essa pergunta é a que me leva para dentro dos aspectos mais profundos da carta.

Uma consideração final acerca da atribuição desse signo ao arcano d'A Lua é a que particularmente me parece mais importante, novamente citando Crowley:

“Peixes é o último dos signos. Representa o último estágio do inverno. Poderia ser denominado a Porta da Ressurreição.” (p.109)

A título de curiosidade, caberia pontuar aqui que esta é a época que precede o Equinócio de Primavera, também é a época adotada para comemoração da Páscoa cristã, ambos ritos em que se celebram o ressurgimento/ressurreição da luz/vida após um período adverso.

Antes que se pudesse gozar a alegria da primavera, era necessário atravessar um inverno rigoroso. Ou ainda, podemos tomar a alegoria do Cristo que para viver a glória da ressurreição tem que enfrentar o martírio da Paixão.

Uma vez que seja o último estágio, lhe é intrínseca a necessidade de transcendência, renascimento. E a vontade/necessidade de mudar, de transcender, geralmente é proporcional aos medos que precisamos superar para vencer a limitação imposta.
O medo do novo, do desconhecido, do diferente.




[Rider Waite]


Falando sobre este arcano, Waite em seu The Pictorial Key to the Tarot, diz:

“A estrada entre as torres é o caminho para o desconhecido. O cão e o lobo são os temores da mente natural em presença daquele lugar de saída, quando só há para guiar uma luz refletida.”(p.57)

Temor seria uma reação plenamente natural, creio eu, a qualquer um que se visse no cenário proposto nessa carta. Mas, curiosamente, não temos nenhum personagem humano figurando aqui.

Como o próprio Waite trata em seguida na sua consideração:

“A luz intelectual é um reflexo e para além fica o mistério desconhecido que não pode ser mostrado. Ela ilumina a nossa natureza animal, alguns tipos da qual são representados embaixo: o cão, o lobo e aquilo que vem das profundezas, a inominável e horrível tendência que é mais baixa do que o animal selvagem." (p.57)

Para além do alcance da luz intelectual está o nosso inconsciente. De onde, entre outras coisas, emerge nosso “eu animal”.

N’A Lua, somos confrontados com nossa natureza selvagem. Somos jogados de volta às entranhas da natureza, a lidar com nossos instintos mais viscerais.




[Golden Dawn]


No O Tarô Cabalístico, de Robert Wang, ao buscar sobre este caminho,lemos:

“Este é um Caminho primitivo, relacionado com a natureza bruta animal. É o Caminho dos instintos animais (a lei da selva), das paixões e energias que não estão sob o controle das considerações intelectuais, morais ou éticas.” (p.184)

É interessante observar que a atribuição cabalística dada a este arcano é Qoph, que significa “nuca” e, segundo Crowley, se refere às potências do cerebelo.

Este é o órgão que faz a ponte entre os comandos do cérebro e o corpo. Está ligado às funções de equilíbrio, movimentos voluntários e reflexos involuntários como a respiração e os batimentos cardíacos. Poderíamos dizer que basicamente é o órgão que liga o centro de consciência intelectual ao veículo corporal.

Wang ainda sugere que este caminho represente o processo de encarnação, no qual o espírito organiza o corpo que irá habitar.

É aqui que eu percebo este arcano começar a tomar uma proporção mais material, corpórea. Indo direto de encontro ao núcleo do simbolismo lunar e, ao mesmo tempo, convergindo com aquilo que a cultura nos ensinou constantemente a temer: o feminino.

Indiscutivelmente, a Lua é o símbolo do feminino por excelência. Basta que se olhe para as mais remotas tradições antigas para constatar isso. E tudo quanto tenha sido relacionado ao âmbito lunar, possui analogia com o feminino.




[Marselha]


Não são, pois, os cães companheiros de Artémis/Diana e também de Hécate que figuram na carta?

Seria muita arbitrariedade ver na composição da figura uma apologia ao ventre da mulher, com suas torres/trompas e lago/útero? Pode ser que sim. De toda forma, me permitirei isso.

São nos insondáveis mistérios do ventre feminino, sangrando a cada ciclo lunar, que a vida se forma.

É da escuridão aquosa do útero dela que todos nós viemos. Expostos desde ali às forças da natureza primordial. São nas dores do seu parto que saímos pela primeira vez, rumo ao desconhecido. Arrancados do conforto uterino vivemos nosso primeiro rito de passagem, tornamo-nos um corpo manifesto independente.

Via de regra, desde então, passaremos a ser educados numa cultura que preza o sentido contrário a esta origem. Aprenderemos a temer as emoções, controlar racionalmente a manifestação delas. Ver esses mecanismos como perigosos, traiçoeiros, enganadores.

O medo do Feminino, que por conseguinte se estende à figura da Mulher, da Lua e da Natureza de um modo geral já é parte integrante do inconsciente da humanidade há tempos.

Mas aí vem A Lua nos lembrar disso: ainda somos animais, mamíferos por definição. Apenas diferenciados por uma consciência dotada da capacidade intelectual.

Crowley lança uma luz pertinente, ao dizer que esta senda é guardada pelo Tabu. Que todo preconceito, superstição e tradição morta se reúnem aqui.

Isso inevitavelmente me leva a pensar na construção de valores culturais judaico-cristãos que, diferente das remotas correntes pagãs, nos afastam da comunhão com a Natureza. Muitas vezes demonizando corpo/sexualidade e especialmente valores ligados ao feminino, nos impedem de percebermos o divino em nós.

Como eu disse no princípio desse longo texto, cheio de loucuras piscianas, creio que não se pode penetrar nos mistérios do arcano d’A Lua sem também se deixar envolver por ela.

Mais do que um momento de provação, de perigo e alerta, este me parece ser um caminho de aceitação da condição humana, da integração com nosso lado dito “obscuro”. Sem isto, creio que seja improvável que Mãe-Lua nos “dê à luz” do arcano seguinte.

Numa última citação ao Crowley, finalizando sua abordagem do arcano ele remete àquilo que frequentemente santos, místicos e iluminados tratam por "Noite Escura da Alma".

Por redução, A Lua carrega em si O Eremita (1+8 = 9). E me é intrigante cogitar a ideia essa que a peregrinação que a figura deste sábio/santo faz seja pelo escuro caminho proposto n’A Lua.

Mas isso já é conversa pra outro momento...




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